segunda-feira, 12 de junho de 2017

O campo da antropologia e o conceito de Jean-Jacques Rousseau enquanto fundador das Ciências do Homem, no pensamento de Lévi-Strauss!...



«A substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe, mas na “história” que é relatada…»

Lévi-Strauss

Há cerca de seis meses que não dávamos sinal de vida activa, em face da fractura do braço escrevente, voltamos ao convívio dos nossos leitores, penitenciamos desde já por essa inadvertida falta, pelo respeito e consideração que nos merecem e, normalmente, retribuem. Mas, voltemos ao que nos interessa.
Na aula inaugural da cadeira de antropologia social dada no Collège de France, em 5 de Janeiro de 1960, Lévi-Strauss faz realçar o facto de que a antropologia social, cadeira introduzida no mesmo colégio francês em 1958, é por demais fiel às formas de pensamento que nomeamos supersticiosas quando as encontramos entre nós, para que não lhe fosse permitido prestar à superstição uma homenagem liminar; o próprio dos mitos, que ocupam um lugar tão importante em nossas pesquisas, não será evocar o passado abolido, e aplicá-lo como um parâmetro sobre a dimensão do presente, a fim de decifrar um sentido, onde coincidem as duas faces – histórica e estrutural –, que opõe ao homem sua própria realidade?


O caminho da antropologia social inicia-se com Sir James George Frazer na Universidade de Liverpool, “ressuscitando” os estudos de Franz Boas, na América, e de Émile Durkheim, na França. Segue-se Marcel Mauss, no Collège de France, que foi o primeiro a introduzir os termos “antropologia social” na nomenclatura francesa, em 1938. Na linha Saussure podemos renovar que é a natureza dos factos que estudamos que nos incita a distinguir neles o que decorre da estrutura e ao que pertence ao acontecimento. Se a sociedade está na antropologia, a antropologia, ela própria, está na sociedade: assim, a antropologia ampliou progressivamente o seu objecto de estudo, até abarcar nele a totalidade das sociedades humanas.
No discurso pronunciado em Genebra a 28 de Junho de 1962, por ocasião das cerimónias do 250.º aniversário do nascimento de Jean-Jacques Rousseau, Lévi-Strauss afirmou que Rousseau não foi somente um observador penetrante da vida campestre, um leitor apaixonado dos livros de viagem, um analista atento dos costumes e das crenças exóticas: sem receio de ser desmentido, pode-se afirmar que ele havia concebido, querido e anunciado a etnologia um século inteiro antes que ela fizesse a sua aparição, colocando-a, de pronto, entre as ciências naturais e humanas já constituídas.
Por exemplo, Jean-Jacques Rousseau define a botânica como uma “cadeia de relações e de combinações”, mas que a natureza nos apresenta encarnados nos “objectos sensíveis”. Desta forma – e segundo Lévi-Strauss – ele aspira também a reencontrar a união do sensível e do inteligível, porque essa mesma união constitui para o homem um estado primário, acompanhando o despertar da consciência; e que não deveria sobreviver-lhe, salvo em raras e preciosas ocasiões.
Para Lévi-Strauss, o pensamento de Rousseau desabrocha a partir de um duplo princípio: o da identificação com o outro, e mesmo com o mais “outro” de todos os outros, ou seja, um animal; e o da recusa da identificação consigo mesmo, isto é, a recusa de tudo o que pode tornar o eu “aceitável”. Para o mesmo antropólogo, estas duas atitudes complementam-se, e a segunda chega mesmo a fundar a primeira: na verdade, eu não sou “eu”, mas o mais fraco, o mais humilde dos “outros”.
Em suma, a revolução rousseauniana, preformando e iniciando a revolução etnológica consiste em recusar as identificações forçadas, quer seja a de uma cultura a outra cultura, ou a de um indivíduo, membro de uma cultura, a um personagem ou a uma função social que esta mesma cultura procura impor-lhe.
Também nós, só assim entendemos a ANTROPOLOGIA!

N.A.: O francês Claude Lévi-Strauss nasceu a 28 de Novembro de 1908 e notabilizou-se como antropólogo, professor e filósofo. Desencarnou em 30 de Outubro de 2009, com 100 anos de idade, e é considerado um dos grandes intelectuais do século XX.

(In, Notícias da Barca, Ano XLI, N.º 1276, 10 de Junho de 2017, p. 7 - Crónicas do Átrio e do Lethes 32)

sexta-feira, 3 de março de 2017

RUI PINTO: Sempre estive próximo de ser feliz... Ainda hoje é assim!...



Rui Pinto nasceu em Viana do Castelo em 1946

Entretantos:

-          Desde 1971 expõe com regularidade, individual e colectivamente, em Portugal e no estrangeiro.
-          Integrou o Grupo de Artistas Portugueses que mostrou à Europa a I Exposição Nacional de Gravura Contemporânea.
-          Participou, no Salão das Nações – Centro de Arte Contemporânea de Paris – numa Colectiva Internacional.
-          Fez parte do Projecto 1990 d.C.
-          Foi premiado – Medalha de Prata – no XIX Salão da Primavera (Estoril); Menção Honrosa na Exposição Temática sobre Lisboa e Menção Honrosa no 1.º Concurso Internacional de Cartaz Turístico.
-          Nos últimos anos tem executado vários painéis em azulejo para edifícios públicos ou privados.
-          Criou 32 medalhas destinadas a organismos ou eventos tanto em Portugal como em Espanha.
-          Recentemente criou a “Nova Cerâmica de Viana” em estreita colaboração com a Fábrica de Cerâmica Vianagrés.
-          Ilustrou dezenas de obras literárias.
-          Está referido no “Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses” do Prof. Fernando de Pamplona, da Academia Nacional de Belas-Artes.

Rui Pinto (auto-retrato)

Como se define como artista?
Aceitar a questão, sem falsas modéstias, é perturbador.
Soubesse eu definir, em mim, o homem!... E isto não é uma mera questão existencialista. É, muito mais, uma consciencialização ética que assumo e começa na complexidade do vocábulo artista em si próprio e, de imediato, no jogo com o outro que o antecede na pergunte, define.
Sejamos minimamente esclarecidos ou resvalaremos para lugares comuns e banalidades que, para além de estafados, só contribuem para a proliferação da mediocridade e, logo, do desinteresse.
Feitas estas considerações, à defesa, vou subtrair-me à complexidade do “todo” e responder, liminarmente, à questão que me é colocada.
Desde há muito rejeitei, por idiossincrasia, a designação de autodidacta face à multiplicidade da oferta de conhecimento através da qual podemos, quando interessados, desenvolver habilidades inatas, particulares, conhecer e trabalhar sobre técnicas e tendências, navegar em universos sem fronteiras mais ou menos apaixonantes. Parece-me oportuno questionar: afinal, em que grandes academias ou escolas, e de que forma, se formaram os grandes mestres, que fizeram a História... do Mundo?
Vou aterrar!
Gosto de pintar, sobretudo, pelo imenso Amor e indizível respeito que sinto pela Natureza. N’Ela vou encontrando resposta para quase tudo o que, em mim, são dúvidas. E, estas, são tantas!
A Luz, a Água, a Atmosfera, a Terra, o Vento, o Dia, a Noite... são, desde o meu ponto de vista, a essência do que somos. Mas também, é óbvio, do que não somos quando nos descuidamos ou nos divorciamos d’Ela.
Assim me sinto pessoa de algumas habilidades para o exercício de um ofício, ou ofícios, que apaixonadamente, sim, vou desenvolvendo.

Rui Pinto (Foto de Porfírio Silva, Dezembro 2016)

Fale-nos um pouco do seu percurso pessoal.
Filho de famílias muito humildes cedo fui cumprir a tarefa de ajudar os meus. Nada de extraordinário na época. – a propósito, como é hoje? – Era o Portugal dos anos cinquenta e sessenta do século passado e as exigências da vida – que não tínhamos, enquanto Vida, porque o poder encarregava-se de “A” determinar – assim o estabeleceram. Comecei por encadernador, à tarefa, em casa, de pequenos livros destinados às Missões das, então, colónias portuguesas em África. Mais tarde fui ajudante de electricista dos Estaleiros Navais e daí transitei para os Serviços Municipais da Câmara Municipal, à época responsável pelas redes de abastecimento de água e electricidade do concelho.
Foi entre dois tempos que me ocorreu algo de relevante influência na minha relação com a Arte... da Literatura.
Eu vivia com meus avós maternos, ali, na antiga Rua do Martim Velho, uma rua estreita que hoje não se reconhece. O quintal da casa de meus avós confinava com o quintal da casa, de um ilustre vianense de seu nome Júlio de Lemos, cuja fachada dava para a Rua da Bandeira. De Júlio de Lemos a lembrança é mesmo vaga. Ao contrário da sua esposa, D. Geminiana, lembro-me bastante bem... enquanto, já, viúva. A Senhora enfermara de diabetes. As perturbações daí resultantes provocaram-lhe a cegueira. Após a dolorosa perda do marido aquele era o mais dramático dos cenários para quem repartia a vida com a paixão pelo esposo e a paixão pela paixão – de vida – daquele mesmo: a literatura, a escrita.
D. Geminiana, agora, tampouco podia ler!...
Em família, dizia-se, que eu lia bem. E as boas relações criadas sob as glicínias do muro que separava os dois quintais depressa resolveram, em parte, a questão. A partir dos meus doze/ treze anos comecei a ir, diariamente, todos os fins de tarde, durante cerca de uma hora, ler para D. Geminiana. (e não é que a Senhora me convenceu que eu lia bem!?...) Não posso precisar o tempo que isto durou. Se lia bem, era a desditosa ouvinte que o dizia. Tenho, hoje, consciência de que pouco compreendia. Todavia ficou-me o hábito, a percepção do mundo que ali estava. Quase o vício. E fui “aprendendo” a ler, relendo. Fui “aprendendo” a pensar. Fui “aprendendo” a ver e a sentir.
Cerca dos dezasseis anos aventurei-me ao confronto com as folhas de papel em branco. E ora desenhava (experimentava) ora escrevia. Não demorei a descobrir a cor e aos dezassete anos assinei (Rupi) as minhas primeiras pinturas.
Aos dezoito anos, imediatamente antes da minha ida para a capital, onde fui funcionário do Tribunal de Trabalho, vendi os primeiros quadros: “O Amolador” e “A Velha”. Recebi, justamente, duzentos escudos por cada qual.
Durante o tempo que passei em Lisboa desfrutei, sempre a partir do meu próprio espaço e a ele regressando, dos benefícios culturais de uma metrópole que, mesmo castrada, tinha outra dimensão. Muitas vezes me senti “desistente” pelo deslumbramento. No interior, porém, algo persistia. Cumprido o serviço militar onde “vendi” muito trabalho através de rifas, regressei, de passagem, a Lisboa. Aos vinte e cinco anos fiz a minha primeira exposição em Viana, apresentada pelo Professor Aníbal Alcino (Obrigado, Professor!!!). Em 1971 “introduziram-me” na cerâmica. Hoje, aqui estou! Os “entretantos” já os leram.

Soajo, aguarela, 1993

O que pensa da Arte Contemporânea Portuguesa?
Quem não é ignorante dificilmente poderá ser inocente. Se não sou de todo ignorante não serei, em igual medida, inocente. E tenho opinião. Considerando a Arte no seu todo não encontro significativas diferenças entre o que se faz em Portugal e no Resto do Mundo. A globalização, matéria aparentemente recente, não o é tanto nos domínios da Arte. Desde há algumas décadas que o significado das diferentes culturas se esbateu, sobre os conceitos passaram a estabelecer-se mais permutas expericiais do que discussões por diferentes objectivos. Existe, a meu ver, uma espécie de “stand-by” que não beneficia nem o todo nem as partes.
Talvez convenha ressalvar o fenómeno da música nas décadas de sessenta e setenta do século XX.
As novas tecnologias perturbaram o ónus da criatividade, não no sentido de a reduzir, mas pelo facilitismo que permite.
Não conheço, à escala planetária, em muitas décadas já, nenhum fenómeno puramente artístico de grande projecção.
É a minha opinião: a de um empírico.

Será que podemos arriscar em pensar que sofreu a influência de alguma corrente de Arte?
Passe o aforismo o único homem que não recebeu influências de outro homem foi Adão.
De mim, alguém que muito estimo disse um dia: é um lírico-anarquista. Confesso uma certa “vaidade”, vindo de quem vem.
Eu direi que só o sentido do Belo me fascina. Ora, o Belo é indefinível. Fernando Pessoa considera-o mesmo secundário. Pessoalmente, porém, encontro-o em muitas coisas e em muito diferenciadas situações. Sendo objectivamente diferenciadas têm, por comum, para mim, o sentido do belo, a sublimação da harmonia. Sinto-me um animal intuitivo e instintivo e nessa forma de caminhar como que me distraio do humano ao encontro da inesperada gestualidade da Natureza.
Ensinaram-me – a vida também – que uma das mais elementares demonstrações e da importância da integência do homem é a sua capacidade de adaptação. Aí desempenho o meu papel e vivo as paixões. Correntes artísticas? Não hesito: os impressionistas seguidos pelos expressionistas escalaram o Everest da pintura.

Outono, técnica mista s/ tela, 2004 (pormenor)

Escrita, pintura, desenho... cerâmica?
Sou de natureza apaixonada... Quase desiquilibradamente. Mas estou de pé, e sempre perto de ser feliz. Na questão que me é colocada amo a pintura e o acto de escrever. Dou-me bem com o desenho embora desejasse conhecê-lo melhor. A cerâmica será sempre, numa linguagem passional, a “outra”.
De tudo resulta que me falta ambição o que me remete para o (des)conforto das dúvidas. Sempre aceitarei ser julgado pelo que não fiz neste estar de quase cinzentismo iluminado (sim, iluminado) pelo quotidiano amanhecer num rio que é o meu sacrário, a minha fonte.
Por agora, pouco mais...

A Arte pela Arte ou a Arte pelo Homem?
Tal como existem frases-feitas ou clichés também há ideias que não fogem a essa matriz. Parece-me o caso. Que me perdoem os mais letrados e conhecedores mas não encontrei nunca comunidade, cultura ou civilização onde a liberdade cultural do indivíduo não conhecesse oposição. Se baralharmos, partirmos e voltarmos a dar vem-nos calhar à mão o mesmo jogo. O desempenho é sempre do Homem. Foi sempre do Homem. Talvez que a Arte para o Homem. Se não, definitivamente, o Homem pela Arte.

Entrevista: Porfírio Pereira da Silva

TERRA MINHA, MINHA TERRA

Uma tela imensa, desenfreada
na côr, na luz, na água decantada
entre vales luminosos e abundantes...
as veigas litorais tão deslumbrantes,
o brilho dos olhos das moçoilas
e na boca delas as papoilas...

Nos milénios dos castros, nas “alminhas”
sempre floridas nas estradas...
e as romarias!... de um povo inteiro,
inteiro e verdadeiro!... as mordomias
e o orgulho dos canteiros nas fachadas,
em granito, das “nossas” fidalguias...

Depois, à mesa, uma paleta
policromada de vinhos e sabores,
tão generosa de tudo que os deuses
no final do banquete adormeceram
como os deuses adormecem, meus senhores!

Sobrou-nos o chão p’ra caminhar e a quietude
de um povo tisnado, sim, mas manso e pouco mais
que o delírio de poetas e pintores.

Rui Pinto
Abril / 1992

(In, «MEALIBRA: Revista de Cultura do Centro Cultural do Alto Minho», N.º 16, Série 3, Verão 2005, p. 116-120)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

CAMILO CASTELO BRANCO (1825-1890) ENTRE O GÉNIO-NEVROPATA E A LOUCURA DE SEU FILHO JORGE

Como inveterado camilianista que somos (camiliano, às vezes), por influência herdada de família e dos mestres colegiais, sempre nos intrigamos com algumas das “transfigurações” em Camilo Castelo Branco, quer nas cartas que escreveu quer mesmo nos seus romances.
Quando investigávamos a plêiade de poetas e escritores portuenses do século XIX, com vista à publicação do nosso segundo romance «Agramonte: ou o mundo astral dos profetas» (2012), a figura de Camilo Castelo Branco sempre nos induziu para o paradoxo de um homem portador de uma instabilidade emocional profunda, ao ponto dessa instabilidade se estender também ao nível político e religioso. E sentimos isso nas relações que estabeleceu, nomeadamente com Faustino Xavier de Novais – a quem confidenciaria, em 1858, já em plena relação com Ana Plácido, que a sua vida “há-de em toda a parte estar subordinada a uma sina infernal” –, Soares dos Passos, Nogueira Lima e António Pinheiro Caldas, a ponto deste último acusar algum desalento – diríamos até “estado depressivo” – aquando da partida de Camilo para o seu refúgio temporário, na então vila de Viana (assim conhecida, apesar de já ter sido elevada à categoria de cidade em 1848), onde viria a ser redactor do jornal “A Aurora do Lima”, fundado dois anos antes (1855); a ver publicados os romances “Carlota Ângela” e “Cenas da Foz”; a iniciar uma relação amorosa com Ana Plácido; e a lhe serem diagnosticados os primeiros sintomas de doença oftalmológica:

Camilo Castelo Branco isolou-se numa pequena vila da formosa província do Minho; Augusto Pereira Soromenho atravessa, talvez, a estas horas as montanhosas terras da Galiza; António Coelho Lousada há muito que dorme o seu último sono, esquecido, em cova ignorada, no cemitério – o Prado do Repouso; Joaquim Simões da Silva Ferraz fixou a sua residência em Lisboa, aonde há muito tempo vive. E eu… eu daqui a dois ou três meses talvez me perca, errante, nas florestas virgens da América! Que voltas dá o mundo no pequeno espaço de treze anos!... Ou, ainda, numa outra fase … Era aquele local, por assim dizer, o nosso templo das musas, o grémio literário dos jovens d’aquela época… E, agora, se alongo a vista, se olho em torno de mim, nem um só encontro de tantos que ali via…

Cerca de duas décadas depois (1879), já com os consumados desaparecimentos físicos de Faustino Xavier de Novais (1820-1869) e de António Pinheiro Caldas (1824-1877), Camilo escreve uma pequena carta a Ana Plácido. É precisamente essa pequena carta original[1] de Camilo, que acabaria por reforçar a ideia que fazíamos do grande génio da literatura do século XIX, aquele que Ricardo Revez, doutorando, em 2005, em História Cultural e das Mentalidades Contemporâneas na Universidade Nova de Lisboa, afirmaria encarnar «o mito do homem romântico como nenhum outro escritor da sua época: perseguido por uma “sina cruel” e pelo peso de uma herança familiar “degenerada”, viveu essa “maldição” por entre amores atribulados e todo o tipo de provocações – até ao suicídio[2]».

Carta de Camilo a Ana Plácido
E diz a referida carta:

Creio que cheguei ao termo da vida. Resigna-te, minha querida e até à morte amada Ana Augusta. Agarra-te à vida que é a tábua salvadora deste filho que está ao pé de mim com a morte estampada no rosto. Segue a tua via de amargura com a coragem que tens sempre revelado. Fica neste mundo por alguns anos como quem se sacrifica ao pai na pessoa dos filhos. Lembra-lhes (…) o teu Camilo.
2 horas da noite
23 de Abril de 1879

O despoletar da nossa curiosidade surge, precisamente, a partir do momento que tomamos conhecimento que o filho de Ana Augusta Plácido, Manuel Plácido Pinheiro Alves, por quem Camilo tinha um carinho especial, havia falecido dois anos antes, enquanto o seu filho Jorge haveria de ser internado, sete anos depois, mais concretamente a 2 de Agosto de 1886, no Hospital Conde Ferreira, de onde sairia “levemente melhorado” a 23 de Outubro desse mesmo ano. Daí concluirmos tratar-se de uma alusão clara ao seu filho Jorge.
A voz recorrente desse internamento seria o médico Ricardo Jorge, célebre médico higienista que exerceu uma influência decisiva na política sanitária do país, e que se tornara íntimo do romancista, como seu médico e seu amigo:


Máscara de Camilo (desenho a lápis de seu filho Jorge)

O abaixo-assinado atesta e jura que Jorge Castelo Branco, idade 23 anos, solteiro, filho de D. Ana Plácido, sofre de alienação mental, pela qual julga ser necessária a sua internação num hospital apropriado. A doença cuja aparição ascende à infância, tem tido fases diversas, segundo se depreende da narração das pessoas de família. A mãe desde sempre lhe notou sinais de pouca sanidade mental. Aos 4 anos observaram que procurava masturbar-se de diferentes modos. Quatro anos depois foi atacado de epilepsia atribuída à ténia.
Dos 10 aos 14 anos passou por uma exacerbação mística notável, entregando-se a assíduas práticas religiosas, chegando a cingir-se a cilícios; depois passou a um absoluto indiferentismo em tal matéria.
Aprendeu a ler e a escrever e chegou mesmo a iniciar os estudos preparatórios que não pôde prosseguir por falta de capacidade, sendo para notar que sozinho em casa adquiriu razoáveis conhecimentos de língua latina entregando-se também ao desenho com certa habilidade.
A masturbação continua; há o abuso do tabaco e especialmente do álcool. Esta dipsomania é irresistível. Nestes últimos tempos tem tido períodos de agitação durante os quais tem lançado fogo, tentando contra a vida dum vizinho, insultando e batido pessoas de família e criados, etc. O pai, homem de talento, é um nevropata e um sifilítico. O avô paterno foi um alienado assim como dois tios. Eis as informações mais úteis que posso apresentar, das quais deduzo que o doente pode ser classificado no grupo dos degenerados hereditários, de que me parece ser um declarado (?) exemplar. – Porto, 2 de Agosto de 1886. – (a) Ricardo de Almeida Jorge.”[3]    

Camilo e Ricardo Jorge (fotografia "Atelier Peres & Vera", Porto)

É o médico Ricardo Jorge quem escreve que Júlio de Matos na papeleta do pobre Jorge, internado por nós no Hospital do Conde Ferreira – documento, seja dito de passagem, psiquiatricamente merecedor de reparos – escreveu, a respeito do pai, como estigma mental, “que oscilava entre as crenças religiosas mais arreigadas e o cepticismo mais completo[4]
Inicialmente, quando, em 1886, Jorge Camilo Castelo Branco foi internado no Hospital Conde de Ferreira, o seu primeiro médico foi o director desse mesmo hospício, António Maria de Sena, passando pouco tempo depois para os cuidados de Júlio de Matos. De facto, seria o próprio Júlio de Matos a escrever na caderneta que cada um dos doentes tinham, como referira Ricardo Jorge, a reforçar a convicção do estado hereditário-degenerativo do filho de Camilo Castelo Branco, imputando ao conceituado romancista, também, um estigma mental. No referido “Caderno de Admissão”, no que concerne à História Clínica, lançamentos periódicos exigidos pelos parágrafos 7.º e 8.º do artigo 21.º, e 1.º do artigo 22.º, Júlio de Matos começa por escrever que Jorge Castelo Branco apresentou-se às primeiras observações num estado de abatimento psíquico muito profundo, emagrecimento, palidez, memória enfraquecida, desprovido de sentimentos morais, falando da família com desconfiança ou ódio. Vincula, ainda, a existência de agitações grandes, em termos comportamentais, mantendo o hábito de masturbação, consequência directa, segundo ele, muito provavelmente, de excessivos abusos alcoólicos a que Jorge se entregava.
E prossegue Júlio de Matos no seu diagnóstico, aqui sim, imputando a Camilo Castelo Branco o “estigma mental”, através da história ancestral, onde diz descobrir uma longa mancha hereditária, do máximo peso degenerativo:

Capa do processo de internamento de Jorge (Arquivo Clínico CHCF-SCMP)

A história ancestral, aliás incompleta no atestado da admissão, descobre uma longa mancha hereditária, do máximo peso degenerativo.
No lado paterno existe a alienação mental no avô e em dois tios; o pai é nevropata, espírito desequilibrado, instável nas convicções e nos afectos, oscilando constantemente entre as crenças religiosas mais arreigadas e o cepticismo mais completo, cultivando preocupações hipocondríacas, pretendendo-se em vésperas da morte há mais de 30 anos, ânimo exaltado e agressivo, amando a polémica na fase emotiva das personalidades e das referências propriamente individuais. A sua história está escrita em dezenas de livros, eminentemente pessoais todos eles e apaixonados. Do lado materno não tenho elementos a referir aqui.
O doente é filho adulterino e foi gerado em condições morais anómalas. Foi sempre um débil, não tendo conseguido mais que uma instrução rudimentar e acanhada; teve na infância ataques de epilepsia, praticou e pratica o onanismo, fuma delírio religioso há anos e entregava-se ultimamente a excessos extremos, bebendo espirituosas em altas doses; pouco antes da Admissão foi acometido de impulsões homicidas, contendo contra a existência do próprio pai. Um irmão – Nuno Plácido Castelo Branco (1864 – 1896) – é dissipador e um outro – Manuel Plácido Pinheiro Alves (1858-1877) –, filho de pai diferente (o que parece indicar vicio degenerativo do lado materno), morreu de meningite, tendo sido também dissipador.[5]

Maximiano Lemos, na sua obra «Camilo e os Médicos», procura não pôr em dúvida o rigor científico da apreciação que Júlio de Matos faz a Camilo, quando nos alerta para o facto de possivelmente conhecer bem o romancista, através do que a sua família lhe narraria desde a infância, tendo em conta que Júlio de Matos era filho do grande advogado Joaquim Marcelino de Matos, que defendera Camilo no célebre processo que lhe movera Manuel Pinheiro Alves, marido de Ana Plácido, e sobrinho materno de um amigo de Camilo, Júlio Xavier de Barros[6].
Para o médico, professor e jornalista Maximiano Lemos (1860-1923), não se descobre na fria linguagem de Júlio de Matos qualquer vestígio de simpatia pelo Camilo, afirmando mesmo acreditar que essa frieza de análise era propositada, dado que, anteriormente à internação do Jorge, cinco anos antes, estalara violenta polémica provocada por Alexandre da Conceição. Camilo referiu-se aos positivistas portugueses com acrimonia mas extremando deles, Júlio de Matos:

Neste canto do ocidente não se imagina que podridões fermentam lá fora da seita positivista que em Portugal supurou em Teófilo, em Conceição e poucos mais furúnculos anónimos, a tresandarem à volta de um bom talento, Júlio de Matos, que voeja por entre as nebulosas siderais em busca da verdade intangível; e quando cuida que o Positivismo científico lhe dá tréguas consoladoras, sente a vacuidade insondável do Positivismo religioso. – assim escreveu Camilo Castelo Branco, na revista mensal Ribaltas e Gambiarras, n.º 7, Fevereiro de 1881.

Retrato a óleo de Jorge, na Casa-Museu de Camilo, S. Miguel de Seide, Famalicão (Foto JOSEOLGON)

É evidente que, depois disto, houve troca de galhardetes, ao ponto de Júlio de Matos se defender pela procura da verdade intangível “e, desalentado talvez pelas agruras do Positivismo científico, me volto para o Positivismo religioso, onde todavia não encontro senão vácuo…”[7]. Abria-se assim a discussão entre positivistas religiosos de Pierre Laffitte, e positivistas científicos, discípulos de Littré. A resposta imediata de Camilo não se fez esperar, e da qual apenas transcrevemos os dois últimos parágrafos, demonstrativos da “aziumada patologia” feita por Júlio de Matos, cinco anos mais tarde, quando se referiu a Camilo como que cultivando preocupações hipocondríacas, de ânimo exaltado e agressivo, amando a polémica na fase emotiva das personalidades e das referências propriamente individuais: «Aqui tem s. ex.ª o segundo furúnculo[8]. Nunca ninguém deu nome tão brando a sujeito de tal tomo e casta. Eu devera chamar-lhe pelo menos uma gangrena. / Para concluir, continuarei, se me permite, a considerar o sr. Júlio de Matos um cérebro poderosamente animado entre dois tinhosos com anasarca de orgulho.»[9]
Em 1916, Teófilo Braga esboça um pouco o estado nevropático de Camilo, alegando que «terríveis heranças de degenerescência nervosa pesavam na organização de Camilo Castelo Branco; nos últimos vinte anos da sua vida, a sobre-excitação nervosa, agravada pelas grandíssimas catástrofes domésticas, traziam-no num estado de agitação física e de depressão moral, e por último de desalento pela calamidade da cegueira, que o impeliu ao suicídio[10] É o mesmo Teófilo Braga que nos alerta para esta possível patologia neuro-depressiva, quando nos dá a conhecer uma carta de Camilo a Ouguela, sem data, mas provavelmente muito próxima de 1872, quando o mesmo escreve: A minha vida é sentado debaixo de uma acácia, numa cadeira de cortiça, com três livros que não leio. Dantes fumava e distraía-me a meditar na intoxicação da nicotina; agora já nem fumar posso; o cérebro aziame e fico como uma modorra dolorosa e estúpida. Em casa não posso estar. Não acho livro que me entretenha. Aqui tens o meu fim de vida. Parece que me sinto num banho de lama, à espera que esta lama se petrifique e se faça sepultura[11].
António Sardinha, por altura do centenário do nascimento de Camilo Castelo Branco (1825-1925), plasmava em palavras comemorativas que “a definição do génio de Camilo nas suas manifestações tão desencontradas como variadíssimas, só nos será dada pelo estudo psicológico da hereditariedade do escritor. Não se trata, evidentemente, de ressuscitar os velhos processos lombrosianos, nem de ver em toda a admirável fulguração literária do grande romancista o final iniludível duma longa descendência de desequilibrados (…)[12].  
Reforçando a ideia inicial de que Camilo Castelo Branco sempre nos induziu para o paradoxo de um homem portador de uma instabilidade emocional profunda, ao ponto dessa instabilidade se estender também ao nível político e religioso, Ricardo Revez (já por nós citado anteriormente), defendeu, em 1985, que o exímio romancista, “romântico integral – profissional de letras”, tornou-se, a partir de certo momento, num “paradoxo constante: ora miguelista, ora liberal, ora fervoroso católico, ora um crente mais contido e crítico da doutrina. A instabilidade psíquica é também uma presença constante nas suas cartas – assim como os padecimentos físicos – e a ideia do suicídio persegue-o[13]”. Suicídio esse que se viria a consumar, dois anos depois de se casar com Ana Plácido, mais concretamente a 1 de Junho de 1890, altura em que já estava praticamente cego. Dez anos depois morre seu filho Jorge Camilo Plácido Castelo Branco (1863-1900).
É evidente que, presentemente, aos olhos da Bioética, não podemos enveredar por julgamentos precipitados, quando as acções de saúde são cada vez mais marcadas pelos paradigmas da prevenção e da cura. Hoje em dia, quem procura um psiquiatra e, consequentemente, venha a tomar “antidepressivos”, acaba por reforçar a ideia de que os “estados depressivos” não significarão irreversíveis “estados de loucura”.
Atendamos ao que escreveu António Simões Viana, o médico-psiquiatra vianense de quem falamos nas Jornadas do ano anterior:

Muito se tem falado já e muito mais, por certo, se irá falar, nos tempos que se aproximam, da deficiência mental.
Variadas são as suas causas: doenças infecto-contagiosas e parasitárias durante a gestação e a primeira infância, traumatismos obstétricos, cariopatias, carências alimentares, carências afectivas e anomalias do metabolismo dos aminoácidos são as mais comuns.
Se são estas as causas mais frequentes de tão grave problema não nos resta outra alternativa que não seja proceder à sua prevenção, isto é, tomar precauções para que tais factores sejam o mais possível evitados porquanto, logo que tenha surgido uma lesão cerebral causadora de oligofrenia, não existe cura para a pessoa afectada dado que, neste momento, a Ciência não conhece nenhum meio para desenvolver o indivíduo atingido ao estado funcional anormal. Contudo, sendo-lhe oferecidas oportunidades de educação, adestramento e várias terapêuticas, a pessoa atingida pode chegar a desenvolver um nível produtivo aceitável não obstante a capacidade funcional do cérebro estar ainda limitada. Daqui poder concluir-se que a resposta última ao problema da deficiência mental esteja, no fim de contas, na sua prevenção[14].

Nos tempos que correm, tal como aconteceu com Alberto Pimentel, ocorre perguntar se a doença haverá prejudicado a obra de Camilo. Corroboramos da resposta, intrínseca à sua interiorização: NÃO SÓ NÃO PREJUDICOU COMO ATÉ LHE IMPRIMIU UMA FEIÇÃO GENIAL.    

BIBLIOGRAFIA

ARQUIVO CLÍNICO do Centro Hospitalar Conde Ferreira – SCMP.
BRAGA, Teófilo – Camillo Castello Branco: Esboço Biográfico. Lisboa: Livraria de Manoel dos Santos, 1916.
BRANCO, Camilo Castelo – Boémia de espírito. 2.ª ed. Porto, 1903.
CABRAL, Alexandre – Dicionário de Camilo Castelo Branco. 2.ª ed. revista e aumentada. Lisboa: Caminho, 2003.
FIER, David – As (Trans)Figurações do Eu nos Romances de Camilo Castelo Branco (1850-1870). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.
JORGE, Ricardo – Camilo Castelo Branco: Recordações e impressões-Camilo e António Aires. Lisboa: Editorial Minerva, s/d.
LEITÃO, Joaquim – Genio da desgraça. Lisboa: Ottosgrafica, 1925.
LEMOS, Maximiano Lemos – Camilo e os médicos. Porto: Companhia Portuguesa Editora, 1920.
SARDINHA, António – O génio de Camilo. In “In Memoriam de Camillo”. Lisboa: Casa Ventura Abrantes, 1925, p. 633-688.
VIANA, António Simões – Deficiência mental é problema grave no distrito. In, “A Aurora do Lima”, Ano 125, Número 63, 3 de Outubro de 1980.


(Comunicação apresentada nas VI Jornadas Internacionais de História da Psiquiatria e Saúde Mental, realizadas em Coimbra, nos dias 11 e 12 de Maio de 2015, numa organização do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra – CEIS20 / Grupo de História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia – GHSCT / Sociedade de História Interdisciplinar da Saúde – SHIS.)




[1] Do nosso arquivo particular.
[2] REVEZ, Ricardo – Camilo Castelo Branco: Romântico Integral – Profissional de Letras. In, Revista “História”, Ano XXVI (III Série), n.º 75, Abril de 2005, p. 20-25.
[3] “Hospital do Conde de Ferreira”, Caderno de Admissão de Jorge Castelo Branco, 1.ª Secção (Homens), N.º 705, 1886-1887, História Clínica; Cf. LEMOS, Maximiano – Camilo e os médicos, p. 516-517.
[4] JORGE, Ricardo – Camilo Castelo Branco: Recordações e Impressões, p. 103.
[5] In, “Hospital do Conde de Ferreira”, Caderno de Admissão de Jorge Castelo Branco, 1.ª Secção (Homens), N.º 705, 1886-1887, História Clínica.
[6] Cf. LEMOS, Maximiano – Camilo e os médicos, p. 562.
[7] Cf. Idem, ibidem, p. 563.
[8] Referindo-se a Teófilo Braga.
[9] BRANCO, Camilo Castelo – Boémia de espírito, p. 411-412.
[10] BRAGA, Teófilo – Camillo Castello Branco: Esboço Biográfico, p. 47.
[11] Idem, ibidem, p. 48-49.
[12] Cit. SARDINHA, António – O génio de Camilo, p. 633.
[13] REVEZ, Ricardo – Camilo Castelo Branco: Romântico Integral – Profissional de Letras. In, Revista “História”, Ano XXVI (III Série), n.º 75, Abril de 2005, p. 20-25.
[14] VIANA, António Simões – Deficiência Mental é problema grave no distrito, p. 1 (em manchete).